Jesus e a preocupada Marta - Lucas 10:38-42


Quando o sol raiou, já me encontrou de pé, é claro. Ia ser um dia cheio e eu não podia me dar ao luxo de ficar mais tempo no leito, orando como gosto de fazer antes de iniciar as atividades do dia. Havia coisas demais para fazer.

Vesti-me depressa. Escolhi usar minha roupa mais nova, embora fosse estar apenas trabalhando em casa. Prendi os cabelos numa longa trança que enrolei sobre a cabeça, o que, segundo meu irmão, me dá um ar de rainha. Não que eu goste de ficar me enfeitando, mas o dia era especial. Iríamos receber a visita de um grande amigo, e ele não viria sozinho. A casa ia ficar cheia e eu queria receber bem a todos.

Desci para a cozinha. Minha serva tinha de ficar doente logo esta semana! Agora seria preciso moer os grãos eu mesma, além das outras tarefas que ela normalmente faz para me ajudar. Na minha casa, a responsabilidade pela boa ordem e pelo conforto é minha. Se tenho ajuda, ótimo. Se não, faço tudo eu mesma. Claro que não sou a única mulher e Maria, minha irmã, me ajuda com algumas tarefas, mas não gosto de ficar dependendo de ninguém e não gosto de ter de pedir ajuda. E Maria, bem... você sabe que ela nem sempre parece sentir a importância de fazer as coisas na hora certa. É meio cabeça-de-vento. É por isso que tenho de assumir a casa. Não posso deixar a peteca cair porque se as coisas não funcionarem direitinho, é meu nome como dona da casa que está em jogo.

Fui para a cozinha e logo coloquei as mãos na massa, literalmente. Havia pão para fazer, carne para temperar e assar, legumes para cozinhar, coalhada seca para preparar, mel para colocar numa vasilha bonita que iria à mesa. E a mesa para arrumar! O difícil era saber quantas pessoas estariam comendo conosco aquele dia. O amigo especial cuja visita era aguardada com tanta ansiedade nunca estava sozinho. Além daquele bando de homens sempre ao seu redor, pessoas de toda espécie o seguiam, querendo ouvir o que ele tinha a dizer, querendo tocá-lo na esperança de um milagre, uma cura, um sinal de seu tão propalado poder.

Essa era outra coisa que eu precisava prever. Aquele grupo vinha de longas viagens, cansado, faminto. Não era qualquer comidinha que satisfaria seu apetite, não. Ai, Senhor, dá-me forças!

Maria desceu pouco depois de mim e se ofereceu para me ajudar, mas mandei que fosse colher umas flores no jardim para enfeitar as floreiras. Ela tem espírito artístico e muito jeito com enfeite e cores. Assim, seria uma coisa a menos para eu me preocupar. E na cozinha, às vezes ela mais atrapalha do que ajuda.

Os preparativos estavam bem encaminhados quando os hóspedes chegaram. Lázaro, meu irmão, saiu ao seu encontro assim que os avistou ao longe, vindo pela estrada que passava por Betânia para levar a Jerusalém.

Vi-os chegando juntos. O Mestre tinha um braço sobre o ombro de meu irmão e eles riam gostoso de alguma história engraçada. Quedei-me a observá-los, o coração leve. Lázaro vinha sofrendo alguns problemas de saúde que me preocupavam bastante. Desde a morte de Papai, ele ficou sendo o chefe de nossa família, assumindo essa responsabilidade e os negócios do pai com firmeza e determinação. Maria e eu sempre o cercamos de todos os cuidados mas ultimamente notamos que ele se cansava à toa, e precisava de períodos de repouso após qualquer esforço físico. Embora nunca se queixasse e sempre relevasse qualquer comentário que fizéssemos a respeito, sabíamos que alguma coisa não ia bem. Por isso era tão bom vê-lo na companhia do Mestre, sorrindo, seu rosto irradiando alegria e paz.

Recebi os convidados e mais uma vez me surpreendi com a meiguice do olhar de nosso hóspede de honra! Senti-me inundada por enorme sensação de bem-estar. Mas não podia ficar ali, parada. Embora as acomodações estivessem preparadas, nossa casa logo virou uma confusão só com o vozerio e a movimentação de todos aqueles homens. Dirigi-me depressa à cozinha, pois a jovem que me ajudava naquele dia não era experiente como a minha serva e ainda havia muito por fazer. Enquanto nos atarefávamos com as tarefas mais pesadas, notei que o vozerio diminuiu até silenciar. Então, uma voz bem modulada soou. Eu sabia a quem ela pertencia. Agucei os ouvidos para escutar o que estava sendo dito, mas qualquer ruído na cozinha atrapalhava. Além disso, se eu me distraisse e deixasse de me concentrar no que tinha de fazer, poderia cometer alguma bobagem das grossas.

E onde se encontrava Maria? Na hora em que eu mais precisava de sua ajuda, ela desaparecia. Mandei a mocinha atrás de minha irmã, mas ela voltou dizendo que não a encontrou no quarto nem nos outros cômodos onde poderia estar. Naquele momento, um pensamento relampejou por minha mente, deixando-me estarrecida. Não! Ela não podia estar na sala, com todos aqueles homens. Mesmo que fôssemos as anfitriãs, havia regras que precisavam ser respeitadas. Nosso pai sempre fora muito rigoroso nessas questões. Eu sabia que, por Maria ser a caçula, havia sido um tanto mimada, mas aquilo passava da conta.

Pé ante pé, dirigi-me à sala, de onde vinha o som da voz . E com que cena me deparei quando cheguei lá! Cercado pelo grupo de homens atentos, o Mestre, recostado contra as almofadas do confortável assento de madeira escura que era reservado às visitas mais importantes, dirigia-lhes a palavra em tons suaves e íntimos. E, quem diria! Sentada sobre um banquinho baixo a seus pés, Maria. De susto, quase sufoquei.

Meu arquejo incontido chamou a atenção do Mestre, que voltou para mim o olhar. Maria nem se mexeu. Como podia fazer uma coisa daquelas, desprezando toda a educação que recebera e negligenciando seus afazeres de dona de casa? Por que sempre sobrava para mim o peso maior da responsabilidade? Eu já não me dedicara o suficiente? O que acontecia naquele dia era apenas uma continuação de tudo o que havia sido minha função na vida.

Não me entenda mal, sou ótima dona de casa porque aprendi a fazer o serviço que me compete e faço com amor e dedicação. Amo servir minha família. Depois que minha mãe morreu, assumi naturalmente suas tarefas pois ela me havia treinado direitinho, ensinando-me com paciência mas com muita exigência. Dizia sempre que queria que suas filhas fossem uma jóia preciosa para o marido que viessem a ter.

Meu casamento durou muito pouco. Meu marido foi atropelado por uma carruagem romana e morreu antes que amigos nossos o trouxessem para casa. Não pude sequer despedir-me dele. Eu nem o conhecia bem - estivemos casados menos de um ano - mas já o amava. Ele era delicado, atencioso, um bom homem.

O lar de meus pais me acolheu na minha viuvez. Eu poderia ter continuado na casa dos pais de meu marido, mas quis voltar. Se ia ficar sozinha, preferia viver ao lado dos meus queridos. O trabalho árduo ajudou o tempo a passar e a dor a diminuir. Aliviei minha mãe das tarefas mais pesadas e cuidei dela quando adoeceu, até seus últimos momentos. Depois assumi o papel de dona da casa de meu pai. Nunca deixei que nada lhe faltasse. Sei que ele sentia muito a falta de Mamãe em coisas que eu jamais poderia substituir, mas naquilo que eu podia suprir a sua falta, esforçava-me por fazê-lo. Uma coisa era certa – eu não sabia ficar parada. E agora, vendo a tranqüilidade de Maria, sentada aos pés do Mestre, senti uma fúria queimando dentro de mim. Por que era sempre eu quem tinha de arcar com o maior peso da responsabilidade? Maria também era mulher. Por que ela podia dar-se ao luxo de fazer o que queria enquanto eu, que também gostaria de ficar ali, sentada, ouvindo o Mestre, não podia fazer isso sob pena de ter um bando de homens famintos nas mãos sem ter o que lhes servir?

O Mestre ainda me fitava. Agora os outros, percebendo a direção de seu olhar, também olhavam para mim. Aquilo era demais. Senti que estava me intrometendo, uma intrusa indesejada.

Antes que pudesse me conter, palavras ácidas me escaparam dos lábios.

-- Senhor, não está vendo que Maria me deixou sozinha com todo o serviço? Mande que venha me ajudar.

Ah, a meiguice do olhar do Mestre! Meneando de leve a cabeça, ele retrucou:

-- Marta! Marta! Você se preocupa demais, minha filha. Não parou um minuto desde que chegamos aqui. Mas tão pouco é realmente necessário. Aliás, só uma coisa. Maria escolheu a boa parte, que nunca lhe será tirada.

Senti um calor intenso invadir meu rosto meu rosto. Agora até Maria olhava para mim. Girei nos calcanhares e saí da sala para que ninguém visse as lágrimas que me queimavam os olhos. Ser repreendida assim, na frente de todos! Só a bondade do olhar do Mestre e o tom terno de sua voz amenizavam a estocada poderosa de suas palavras, que ficaram queimando em minha mente enquanto eu remexia nos potes a comida já pronta.

“Ele é homem”, argumentei comigo mesma. “Não entende o meu dilema, a minha aflição.” Mas, mesmo enquanto as palavras me cruzavam a mente, eu sabia que nunca conhecera alguém mais compreensivo e amoroso do que ele.

Deixei-me cair sobre um banquinho. Minha ajudante, espantada, fitava-me sem saber o que fazer, as mãos nervosas esticando a ponta do seu chale. Com as emoções revolvendo num turbilhão escaldante, eu não conseguia pensar direito. A voz do Mestre continuava a soar aos meus ouvidos, terna, amorosa .... preocupada comigo. De repente, percebi! Jesus se entristecia por eu não estar lá na sala com ele. Ele desejava minha companhia mais do que uma comida pronta! E eu, o que ficava fazendo? Coisas úteis, importantes para mim. Eu conhecia muito bem minhas responsabilidades. Mas tudo isso teria passado amanhã. E meu tempo com o Mestre teria sido reduzido a alguns momentos apenas. Ele oferecia um banquete e eu me dispunha a comer migalhas.

Como ele tinha razão! Maria escolheu a boa parte. As palavras que ela ouvia com tanta atenção estarão para sempre com ela. Eu teria de ouvi-las de segunda mão agora. Ou será que teria?

Pé ante pé, dirigi-me de novo à sala e me apoiei a uma coluna. A voz do Mestre respondia à pergunta de um dos discípulos, explicando a respeito do amor do Pai e de sua disposição de fazer a vontade dele.

A conversa chegava ao fim. Maria levantou-se e veio em minha direção, esboçando um leve sorriso quando me viu em pé ali. Aproximando-se, ela passou o braço por minha cintura e falou baixinho: “Vamos cuidar do almoço, mana. O pessoal está com fome.”