Quando o sol
raiou, já me encontrou de pé, é claro. Ia ser um dia cheio e
eu não podia me dar ao luxo de ficar mais tempo no leito,
orando como gosto de fazer antes de iniciar as atividades do dia.
Havia coisas demais para fazer.
Vesti-me depressa. Escolhi usar minha roupa
mais nova, embora fosse estar apenas trabalhando em casa. Prendi
os cabelos numa longa trança que enrolei sobre a cabeça, o que,
segundo meu irmão, me dá um ar de rainha. Não que eu goste de
ficar me enfeitando, mas o dia era especial. Iríamos receber a
visita de um grande amigo, e ele não viria sozinho. A casa ia
ficar cheia e eu
queria receber bem a todos.
Desci para a cozinha. Minha serva tinha de
ficar doente logo esta semana! Agora seria preciso moer os grãos
eu mesma, além das outras tarefas que ela normalmente faz para
me ajudar. Na minha casa, a responsabilidade pela boa ordem e
pelo conforto é minha. Se tenho ajuda, ótimo. Se não, faço
tudo eu mesma. Claro que não sou a única mulher e Maria, minha
irmã, me ajuda com algumas tarefas, mas não gosto de ficar
dependendo de ninguém e não gosto de ter de pedir ajuda. E
Maria, bem... você sabe que ela nem sempre parece sentir a
importância de fazer as coisas na hora certa. É meio cabeça-de-vento.
É por isso que tenho de assumir a casa. Não posso deixar a
peteca cair porque
se as coisas não funcionarem direitinho, é meu nome como dona
da casa que está em jogo.
Fui para a cozinha e logo coloquei as mãos
na massa, literalmente. Havia pão para fazer, carne para
temperar e assar, legumes para cozinhar, coalhada seca para
preparar, mel para colocar numa vasilha bonita que iria à mesa.
E a mesa para arrumar! O difícil era saber quantas pessoas
estariam comendo conosco aquele dia. O amigo especial cuja
visita era aguardada com tanta ansiedade nunca estava sozinho.
Além daquele bando de homens sempre ao seu redor, pessoas de
toda espécie o seguiam, querendo
ouvir o que ele tinha a dizer, querendo tocá-lo na esperança
de um milagre, uma cura, um sinal de seu tão propalado poder.
Essa era outra coisa que eu precisava
prever. Aquele grupo vinha de longas viagens, cansado, faminto.
Não era qualquer comidinha que satisfaria seu apetite, não.
Ai, Senhor, dá-me forças!
Maria desceu pouco depois de mim e se
ofereceu para me ajudar, mas mandei que fosse colher umas flores
no jardim para enfeitar as floreiras. Ela tem espírito artístico
e muito jeito com enfeite e cores. Assim, seria uma coisa a
menos para eu me preocupar. E na cozinha, às vezes ela mais
atrapalha do que ajuda.
Os preparativos estavam bem encaminhados
quando os hóspedes chegaram. Lázaro, meu irmão, saiu ao seu
encontro assim que os avistou ao longe, vindo pela estrada que
passava por Betânia para levar a Jerusalém.
Vi-os chegando juntos. O Mestre tinha um
braço sobre o ombro de meu irmão e eles riam gostoso de alguma
história engraçada. Quedei-me a observá-los, o coração leve.
Lázaro vinha sofrendo alguns problemas de saúde que me
preocupavam bastante. Desde a morte de Papai, ele ficou sendo o
chefe de nossa família, assumindo essa responsabilidade e os
negócios do pai com firmeza e determinação. Maria e eu sempre
o cercamos de todos os cuidados mas ultimamente notamos que ele
se cansava à toa, e precisava de períodos de repouso após
qualquer esforço físico. Embora nunca se queixasse e sempre
relevasse qualquer comentário que fizéssemos a respeito, sabíamos
que alguma coisa não ia bem. Por isso era tão bom vê-lo na
companhia do Mestre, sorrindo, seu rosto irradiando alegria e
paz.
Recebi os convidados e mais uma vez me
surpreendi com a meiguice do olhar de nosso hóspede de honra!
Senti-me inundada por enorme sensação de bem-estar. Mas não
podia ficar ali, parada. Embora as acomodações estivessem
preparadas, nossa casa logo virou uma confusão só com o
vozerio e a movimentação de todos aqueles homens. Dirigi-me
depressa à cozinha, pois a jovem que me ajudava naquele dia não
era experiente como a minha serva e ainda havia muito por fazer.
Enquanto nos atarefávamos com as tarefas mais pesadas, notei
que o vozerio diminuiu até silenciar. Então, uma voz bem
modulada soou. Eu sabia a quem ela pertencia. Agucei os ouvidos para escutar o que estava sendo dito,
mas qualquer ruído na cozinha atrapalhava. Além disso, se eu
me distraisse e deixasse de me concentrar no que tinha de fazer,
poderia cometer alguma bobagem das grossas.
E onde se encontrava Maria? Na hora em que
eu mais precisava de sua ajuda, ela desaparecia. Mandei a
mocinha atrás de minha irmã, mas ela voltou dizendo que não a
encontrou no quarto nem nos outros cômodos onde poderia estar.
Naquele momento, um pensamento relampejou por minha mente,
deixando-me estarrecida. Não! Ela não podia estar na sala, com
todos aqueles homens. Mesmo que fôssemos as anfitriãs, havia
regras que precisavam ser respeitadas. Nosso pai sempre fora
muito rigoroso nessas questões. Eu sabia que, por Maria ser a caçula, havia sido um
tanto mimada, mas aquilo passava da conta.
Pé ante pé, dirigi-me à sala, de onde
vinha o som da voz . E com que cena me deparei quando cheguei lá!
Cercado pelo grupo de homens atentos, o Mestre, recostado contra
as almofadas do confortável assento de madeira escura que era
reservado às visitas mais importantes, dirigia-lhes a palavra
em tons suaves e íntimos. E, quem diria! Sentada sobre um
banquinho baixo a seus pés, Maria. De susto, quase sufoquei.
Meu arquejo incontido chamou a atenção do
Mestre, que voltou para mim o olhar. Maria nem se mexeu. Como
podia fazer uma coisa daquelas, desprezando toda a educação
que recebera e negligenciando seus afazeres de dona de casa? Por
que sempre sobrava para mim o peso maior da responsabilidade? Eu
já não me dedicara o suficiente? O que acontecia naquele dia
era apenas uma continuação de tudo o que havia sido minha função
na vida.
Não me entenda mal, sou ótima dona de
casa porque aprendi a fazer o serviço que me compete e faço
com amor e dedicação. Amo servir minha família. Depois que
minha mãe morreu, assumi naturalmente suas tarefas pois ela me
havia treinado direitinho, ensinando-me com paciência mas com
muita exigência. Dizia sempre que queria que suas filhas fossem
uma jóia preciosa para o marido que viessem a ter.
Meu casamento durou muito pouco. Meu marido
foi atropelado por uma carruagem romana e morreu antes que
amigos nossos o trouxessem para casa. Não pude sequer despedir-me
dele. Eu nem o conhecia bem - estivemos casados menos de um ano
- mas já o amava. Ele era delicado, atencioso, um bom homem.
O lar de meus pais me acolheu na minha
viuvez. Eu poderia ter continuado na casa dos pais de meu marido,
mas quis voltar. Se
ia ficar sozinha, preferia viver ao lado dos meus queridos. O
trabalho árduo ajudou o tempo a passar e a dor a diminuir.
Aliviei minha mãe das tarefas mais pesadas e cuidei dela quando
adoeceu, até seus últimos momentos. Depois assumi o papel de
dona da casa de meu pai. Nunca deixei que nada lhe faltasse. Sei
que ele sentia muito a falta de Mamãe em coisas que eu jamais
poderia substituir, mas naquilo que eu podia suprir a sua falta,
esforçava-me por fazê-lo. Uma coisa era certa – eu não
sabia ficar parada. E agora, vendo a tranqüilidade de Maria,
sentada aos pés do Mestre, senti uma fúria queimando dentro de
mim. Por que era sempre eu quem tinha de arcar com o maior peso
da responsabilidade? Maria também era mulher. Por que ela podia
dar-se ao luxo de fazer o que queria enquanto eu, que também
gostaria de ficar ali, sentada, ouvindo o Mestre, não podia
fazer isso sob pena de ter um bando de homens famintos nas mãos
sem ter o que lhes servir?
O Mestre ainda me fitava. Agora os outros,
percebendo a direção de seu olhar, também olhavam para mim.
Aquilo era demais. Senti que estava me intrometendo, uma intrusa indesejada.
Antes que pudesse me conter, palavras ácidas
me escaparam dos lábios.
-- Senhor, não está vendo que Maria me
deixou sozinha com todo o serviço? Mande que venha me ajudar.
Ah, a meiguice do olhar do Mestre! Meneando
de leve a cabeça, ele retrucou:
-- Marta! Marta! Você se preocupa demais,
minha filha. Não parou um minuto desde que chegamos aqui. Mas tão
pouco é realmente necessário. Aliás, só uma coisa. Maria
escolheu a boa parte, que nunca lhe será tirada.
Senti um calor intenso invadir meu rosto
meu rosto. Agora até Maria olhava para mim. Girei nos
calcanhares e saí da sala para que ninguém visse as lágrimas
que me queimavam os olhos.
Ser repreendida assim, na frente de todos! Só a bondade do
olhar do Mestre e o tom terno de sua voz amenizavam a estocada
poderosa de suas palavras, que ficaram queimando em minha mente enquanto eu remexia
nos potes a comida já pronta.
“Ele é homem”, argumentei comigo mesma.
“Não entende o meu dilema, a minha aflição.” Mas, mesmo
enquanto as palavras me cruzavam a mente, eu sabia que nunca
conhecera alguém mais compreensivo e amoroso do que ele.
Deixei-me cair sobre um banquinho. Minha ajudante,
espantada, fitava-me sem saber o que fazer, as mãos nervosas
esticando a ponta do seu chale. Com as emoções revolvendo num turbilhão escaldante, eu
não conseguia pensar direito. A voz do Mestre continuava a soar
aos meus ouvidos, terna, amorosa .... preocupada comigo. De
repente, percebi! Jesus se entristecia por eu não estar lá na
sala com ele. Ele desejava minha companhia mais do que uma
comida pronta! E eu, o que ficava fazendo? Coisas úteis,
importantes para mim. Eu conhecia muito bem minhas
responsabilidades. Mas tudo isso teria passado amanhã. E meu
tempo com o Mestre teria sido reduzido a alguns momentos apenas.
Ele oferecia um banquete e eu me dispunha a comer migalhas.
Como ele tinha razão! Maria escolheu a boa parte. As
palavras que ela ouvia com tanta atenção estarão para sempre
com ela. Eu teria de ouvi-las de segunda mão agora. Ou será
que teria?
Pé ante pé, dirigi-me de novo à sala e me apoiei a uma
coluna. A voz do Mestre respondia à pergunta de um dos discípulos,
explicando a respeito do amor do Pai e de sua disposição de
fazer a vontade dele.
A conversa chegava ao fim. Maria levantou-se e veio em
minha direção, esboçando um leve sorriso quando me viu em pé
ali. Aproximando-se, ela passou o braço por minha cintura e
falou baixinho: “Vamos cuidar do almoço, mana. O pessoal está
com fome.”